Poder da cloroquina contra COVID-19: ‘Tão mito quanto o Messias’, diz médico

8/07/2020 | Brasil

foto: AFP/Sergio LIMA

 

O que provavelmente salvou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de se juntar aos 66.741 brasileiros mortos pela COVID-19 ou a outros tantos milhares hospitalizados por complicações da doença não foi a hidroxicloroquina – medicamento a que o mandatário atribuiu notáveis efeitos no combate ao novo coronavírus nessa terça-feira (7). O bom estado de saúde anunciado pelo político de 65 anos após contrair o vírus é, possivelmente, fruto de uma casualidade: Bolsonaro está no grupo da maioria do infectados (85%), que desenvolvem apenas sintomas leves da virose e se curam graças à ação do próprio organismo. A avaliação é dos infectologistas Carlos Starling e Unaí Tupinambás.

“O resto é mito. Tão mito quanto o ‘Messias’”, brinca Starling, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia. O especialista lembra que a Organização Mundial de Saúde (OMS) chegou a testar os efeitos do anti-inflamatório em pacientes hospitalizados, acometidos pela forma aguda da enfermidade, mas encerrou definitivamente os estudos em 4 de julho, após constatar a ineficácia do fármaco. Pouco depois de Bolsonaro anunciar que estava contaminado pelo vírus, a instituição voltou a reforçar o fracasso da droga no combate ao Sars-CoV-2 (causador da pandemia). Em entrevista coletiva realizada nessa terça (7), a cientista-chefe da OMS Soumya Swaminathan destacou que a cloroquina e seus derivados produzem pouca ou nenhuma redução na mortalidade dos pacientes na comparação com aqueles submetidos ao atendimento padrão.

“O que eu posso dizer é que não existem evidências científicas robustas de que a substância funcione. Se não há essa comprovação, a aposta na efetividade dela é de outra natureza”, esclarece Carlos Starling.

“Tem gente que toma água benta acredita que ficou curado por isso. Eu sou médico, não é meu papel dizer que a crença da pessoa está errada. Mas, do ponto de vista científico, ainda não ficou provado que água benta é capaz de curar”, completa

 

Melhora espontânea

O infectologista e professor da Faculdade de Medicina da UFMG, Unaí Tupinambás, explica o mecanismo que, possivelmente, levou à evolução favorável de Bolsonaro à infecção pelo novo coronavírus. “Gostaria de ressaltar que não conheço detalhes do caso do presidente. Não acompanhei o tratamento dele. De todo modo, a COVID-19 é, via de regra, uma doença autolimitada, ou seja: tem um ciclo definido, com duração de alguns dias. Os sintomas desaparecem espontaneamente”, diz o especialista.

De acordo com o Ministério da Saúde, o ciclo médio do coronavírus é de 12 dias. São cinco de incubação – período entre o contágio e o início dos sintomas – e sete de transmissibilidade. O quadro desenvolvido pelo infectado pode variar de assintomático a gravíssimo. “Cerca de 15% dos casos progridem para a forma grave. Essas pessoas apresentam marcadores genéticos que as tornam mais suscetíveis, ou os chamados fatores de risco, como obesidade, imunidade baixa, idade avançada, além das doenças crônicas, como diabetes, cardiopatias e hipertensão”, afirma Carlos Starling.

“Importante lembrar que a literatura médica estima que de 30 e 40% da população sofre de doenças crônicas sem saber. Então, os jovens não devem acreditar que estão a salvo da pandemia. Todo mundo precisa se cuidar”, alerta o especialista, referindo-se aos conselhos dados pelo presidente na manhã de terça (7). “Se vocês forem jovens, se cuidem, mas fiquem tranquilos que o risco é quase zero de um problema grave”, minimizou Bolsonaro.

Os infectologistas também chamaram atenção para o fato de que o coquetel de hidroxicloroquina e azitromicina com que Bolsonaro diz ter se tratado pode oferecer riscos à saúde. “A prescrição dos dois remédios juntos não é recomendada. Sozinhas, as substâncias já causam arritmia cardíaca. Juntas, esse efeito fica potencializado. Se Bolsonaro fez mesmo uso simultâneo delas, correu risco”, observou Unaí Tupinambás.

 

Controvérsias

A hidroxicloroquina e a cloroquina são substâncias anti-inflamatórias tradicionalamentes utilizadas no tratamento da malária, além de doenças autoimunes como lupus e artrite reumatóide. Ela propiciam o chamado efeito imunomodulador – que é o aumento da resposta imune contra microorganismos diversos.

Os estudos sobre a eficácia dos medicamentos no combate à COVID-19 foram iniciados em todo o mundo no fim de março, cercados de polêmicas. No Brasil, a droga foi testada em dois grandes ensaios clínicos. Um deles, o Solidariedade (Solidarity), se deu por meio de um parceria da OMS com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), envolveu 18 hospitais de 12 estados brasileiros. O segundo é o Coalização Covid Brasil, coordenado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, HCor, Sírio Libânes e BRICNet (Brazilian Research in Intensive Care Network, rede de estudos clínicos na área de medicina intensiva).

A OMS anunciou a paralisação de suas pesquisas três vezes. A primeira, em 25 de maio, após a divulgação de um amplo artigo publicado no renomado periódico “The Lancet”, que apontava efeitos colaterais severos decorrentes do uso dos fármacos, como arritmias cardíacas. Os experimentos foram retomados pouco depois, em 3 de junho, já que o artigo foi retirado da revista científica. Os próprios autores pediram a retração, reconhecendo que utilizaram dados incompletos para elaborar o trabaloho. Em 17 de junho, a OMS anunciou nova suspensão dos ensaios clínicos. Desta vez, alegou que os testes do Solidariedade, além de outros desenvolvidos no Reino Unido, concluíram que os medicamentos não reduzem a mortalidade dos contaminados pela COVID-19 de forma significativa. O encerramento defitivo dos estudos foi comunicado em 4 de julho, por recomendação do comitê diretor do Solidariedade, nos 21 países em que o programa era coordenado. Além da hidroxicloroquina, o lopinavir e o ritonavir também foram considerados ineficazes contra o coronavírus.

Um estudo francês publicado nessa terça (7) reforça o coro da OMS. A pesquisa apontou que o uso de antimaláricos não evita formas graves da virose no longo prazo, sobretudo entre os infectados que sofrem de doenças autoimunes.

A despeito das evidências de ineficácia, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro seguem como entusiastas das drogas em questão. Em 15 de junho, a A FDA (Food and Drug Administration), agência que equivale à Anvisa nos Estados Unidos, cancelou a autorização para uso da hidroxicloroquina no tratamento contra a COVID-19. Trump, no entanto, ainda defende o uso do remédio.

Em postura semelhante, Bolsonaro chegou a ter um post em que exaltava a efetividade da hidroxicloroquina apagado pelo Twitter, que considerou a atitidude como o propagação de notícia falsa. A cloroquina foi, por fim, pivô da saída de dois ministros da Saude – Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta. Ambos afirmam terem sido pressionados para liberar o uso da substância em quadros amenos da COVID-19, na contramão das orientações da OMS, que havia aprovado a administração do remédio apenas para casos graves.

 

Do Uai

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