Réquiem para um encontro

21/11/2018 | Luiz Mascarenhas

Luiz Mascarenhas com Sr José Silvério Vasconcelos Miranda – vulgo Urtigão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caía uma chuva fininha quando eu deixei a Matriz de Sant’ana. De guarda-chuvas aberto, passos reflexivos, demoradamente fitei o meu entorno, com o cenário banhado pela iluminação da praça sob a garoa noturna, desvelando uma cena que inspirava poesia e me remetia a introspeções. Atrás de mim, o relógio da Matriz soou suas firmes badaladas… oito vezes; completando a cena.
Estanha a Vida. O Urtigão havia me encomendado uma missa solene, que fosse cantada pelo nosso côro masculino, para a memória de sua mãe, dona Graciana Coura de Miranda, cuja biografia havia lançado há pouco na cidade. Obra que contou com minha participação na feitura de seu prefácio, pela generosidade do autor. E agora, eu estava deixando a igreja, após cantarmos a missa solene que ele desejava; mas não para a sua mãe e sim para o seu sétimo dia.
Nunca senti tanto a morte de um amigo que – na verdade- havia conhecido há tão pouco tempo (uns dois anos). Prova de que não é a duração e sim a qualidade de nossas relações que as graduam. O Zé Silvério foi um feliz achado! Dois sujeitos bem falantes e de personalidade forte, posso dizer. Perambulamos algumas vezes pelos meus habituais botecos e bares da cidade. Ao final dos colóquios – já beirando a madrugada- deixava-o no Grande Hotel. Foram momentos prazerosos, interessantes, ricos, de muito aprendizado. Ali estava um camarada com uma memória brilhante e que desenhava para mim cenas bucólicas e saborosas da Itaúna das décadas de 50 e 60 do século passado, quando por aqui viveu. Compartilhou comigo, sua fecunda experiência no ramo da hotelaria, quando conheceu ilustres personalidades que hoje figuram nos nossos livros de História; como Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, Milton Campos, Clóvis Salgado e tantos outros.
Inteligente, culto, perspicaz, ácido, lúcido…algumas das características do nosso “Urtigão” ou “Camelo”, enfim, do Zé Silvério. Tinha nome de um quase-santo: Monsenhor Horta ou Monsenhor José Silvério Horta – tido como santo pelo povo de Mariana e arredores. Agradeço imensamente a outro bom amigo, o Historiador Charles Aquino (leia-se “Itaúna Décadas”) que teve a feliz iniciativa de me apresentar a ele. Costuramos uma boa e fecunda amizade. Vez por outra me telefonava e trocávamos figurinhas. Impagável e deliciosa foi sua entrevista – que eu e o Confrade Jonas Vieira (escritor, psicólogo, teatrólogo, sexólogo, artista plástico, biógrafo de Pedro Malan e atirador de facas) tivemos a heroica iniciativa de fazer, em nosso programa “Sintonia Cultural” na Rádio Santana FM. Foi uma tarde hilariante e de preciosas informações!
Sinto que o Urtigão estava na verdade, fazendo o caminho inverso de sua feliz existência. O retorno às nossas barrancas, as crônicas e “causos” do passado, a homenagem à sua mãe, o levantar de suas memórias. Urtigão não estava aqui à toa. Ele estava – mesmo que de maneira inconsciente- preparando a sua volta. O seu retorno definitivo.
Ao prestar a atenção na Liturgia de sua Missa de Réquiem (ou da Ressurreição ou do Sétimo Dia- como queiram) tudo me remetia à sua feliz memória. “…teu primeiro amor. Lembra-te de onde caíste! Converte-te e volta à tua prática inicial…” Trecho da leitura extraída do livro do Apocalipse: de fato, um Urtigão a converter-se, a retornar para as terras de Sant’ana, para suas raízes. Para o reencontro definitivo com o seu passado = seu primeiro amor! Vejamos o salmo do dia: “Eis que ele é semelhante a uma árvore, que à beira da torrente está plantada; ela sempre dá seus frutos a seu tempo, e jamais as suas folhas vão murchar. Eis que tudo o que ele faz vai prosperar”. Sim, nosso Urtigão deu bons e variados frutos e em muito prosperou. E na passagem do cego de Jericó, citado no evangelho de Lucas (o pai do Zé Silvério era cego); ouvi Nosso Senhor perguntando para o Urtigão: ”Que queres que eu faça por ti? ” E como o cego de Jericó, nosso Zé Silvério respondeu: “Senhor, eu quero enxergar de novo”. E então, seus olhos se abriram para a Eternidade.
Termino, com o responsório do salmo proclamado: “Ao vencedor concederei comer da Árvore da Vida”.

 

 

*Bacharel em Direito / Licenciado em História pela UNIVERSIDADE DE ITAÚNA

  Historiador/ Escritor/ Membro Fundador da ACADEMIA ITAUNENSE DE LETRAS/

Autor de “Crônicas Barranqueiras” e coautor de “Essências”, “Olhares Múltiplos” e

 “O que a vida quer da gente é coragem”/

Diretor da E.E. “Prof. Gilka Drumond de Faria”

Cidadão Honorário de Itaúna

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